Colecistectomia, erro médico e responsabilidade civil da clínica e do médico

O tribunal entende que existia responsabilidade civil por erro médico, imputada ao hospital privado e responsabilidade extracontratual do médico.

O tribunal entendeu que existia responsabilidade civil por ato médico, imputada ao hospital privado com quem o doente celebrou um contrato para operação cirúrgica, bem como responsabilidade extracontratual do médico não exigida pelo cumprimento do contrato.

A doente foi submetida a uma intervenção cirúrgica designada por colecistectomia da qual resultou uma secção completa da via biliar principal ao nível do colédoco. A doente acabou por falecer algum tempo depois, num contexto de choque séptico que evoluiu para falência multiorgânica.

O que se passou?

A ação judicial foi interposta pela mãe da falecida.

Em 2007 a sua filha foi submetida a uma intervenção cirúrgica designada por colecistectomia, pelo médico cirurgião, nas instalações da Clínica. Durante a intervenção ocorreu uma hemorragia intraoperatória súbita que resultou de uma secção completa da via biliar principal ao nível do colédoco, de uma extensa laceração da veia porta 1 centímetro acima da bifurcação e de uma laceração hepática profunda do leito vesicular, que foram causadas por erro no procedimento cirúrgico ou do material usado, que a equipa médica não conseguiu controlar. Foi decidido transferir a doente para o Hospital, onde foi operada diversas vezes. Veio a falecer no Serviço de Cuidados Intensivos do Hospital, num contexto de choque séptico, que evoluiu para falência multiorgânica.

A mãe da falecida pediu uma indemnização, enquanto herdeira, dos:

  • salários perdidos pela filha;
  • retribuições que aquela deixou de auferir durante a sua presumível existência;
  • despesas que aquela teve com medicamentos, deslocações e honorários ao médico que a assistiu;
  • pelos danos não patrimoniais por aquela sofridos.

Em seu próprio nome, a mãe pediu ainda indemnização pelo sofrimento que teve com a morte da sua filha e dos danos de natureza não patrimonial que também sofreu.

Em primeira instância os réus (o médico e a Clínica) foram absolvidos.
A mãe recorreu para o Tribunal da Relação. Este tribunal condenou apenas a Clínica no pagamento de €100.000 absolvendo o médico.

Deste acórdão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Este Tribunal veio a decidir da seguinte forma: condenar ambos, a Clínica e o médico, a pagarem à herdeira, enquanto tal, as quantias de €40.000 por danos morais próprios da falecida e €70.000 a título de indeminização pela perda do direito à vida. E ainda a título de danos morais próprios da mãe, €20.000.

Quais foram os factos dados por provados?

  • Por sofrer de colecistite, a doente submeteu-se, na manhã de 11 de julho de 2007, a intervenção cirúrgica de colecistectomia (remoção da vesícula) por laparoscopia em litíase vesicular;
  • Durante a laparoscopia surgiu uma hemorragia que obrigou a converter de emergência a laparoscopia em laparotomia (operação de barriga aberta);
  • Foi ao mobilizar o corpo/infundíbulo da vesícula que surgiu, de forma inesperada, cerca das 10,00 horas, uma hemorragia;
  • Esta hemorragia foi originada pela laceração tangencial do ramo direito da veia porta;
  • A laceração tangencial do ramo direito da veia porta, teve como causa provável uma tração excessiva ou intempestiva, mas acidental, sobre o infundíbulo vesicular, tendo, eventualmente, contribuído a existência de aderências peri-vesiculares a esse nível;
  • Devido à dificuldade em controlar a hemorragia, o médico decidiu transferir a doente para o Hospital, uma unidade de referência em cirurgia hepatobiliopancriática, onde chegou pelas 14,48h e foi operada às 16,30H, desse mesmo dia, tendo sido verificado: i) laceração extensa tangencial da veia porta direita 1 cm acima da bifurcação com hemorragia ativa; ii) laceração hepática profunda a nível do leito vesicular; iii) secção completa da via biliar principal a nível do colédoco abaixo da bifurcação;
  • No dia 13.07.2007, procedeu-se a nova intervenção, tendo-se constatado a ausência de hemorragia, e necrose do fígado direito por falta de irrigação;
  • Devido ao agravamento clínico, com falência hepática, foi realizado transplante hepático urgente no dia 18 daquele mês;
  • A 12.06.2009, a doente foi novamente operada por anastomose biliar realizada no transplante;
  • A laceração hepática a nível do leito vesicular e a secção completa da via biliar principal a nível colédoco abaixo da bifurcação foram efetuadas depois da transformação da laparoscopia em laparotomia;
  • E foram produzidas durante a colecistectomia de emergência, atendendo que a violência da hemorragia, obscurecendo o campo operatório não permitisse uma definição correta das estruturas e planos a dissecar.
  • A doente acabou por falecer.

O que sustentou a decisão do Supremo Tribunal de Justiça?

De um modo geral tem-se entendido que no âmbito de um contrato de prestação de serviço médico de remoção de um órgão, o profissional assume uma obrigação de resultado quanto à referida remoção, e uma obrigação de meios quanto à aplicação da técnica adequada e conveniente a esse resultado, isto é, de observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis).

Nesta situação, a obrigação de resultado foi cumprida, com a remoção da vesícula. O problema ocorre com a execução da obrigação.

Provou-se que o médico atuou ilicitamente porque provocou uma lesão no corpo da doente. A laceração da veia porta ocorreu durante a execução do contrato destinado à realização do ato médico de remoção da vesícula.

O médico também agiu com culpa, porque desviou-se do modelo de comportamento – em termos de prudência, competência e atenção – que ele podia e devia ter adotado.

O modelo de comportamento esperado é o do bom profissional da mesma categoria (no caso, um médico-cirurgião), a atuar perante um cenário com os contornos daquela em que o concreto médico atuou.

A laceração da veia porta deu-se por imperícia, falta de cuidado, do médico, mesmo que acidental. Sendo assim, a sua conduta foi negligência.

É que o conhecimento da gravidade dos riscos e do seu carácter significativo constitui um elemento que é controlado pelo médico especialista, que se presume dominar as leges artis e o estádio da ciência.

Daqui resulta que o médico também é responsável pelos danos civis, tendo como fonte a responsabilidade civil extracontratual.

Já a responsabilidade da Clínica é contratual, isto é, provém do incumprimento do contrato de prestação de serviços que foi celebrado entre a falecida e a instituição.

Fale com um advogado se ficou com dúvidas ou pretende esclarecimentos para o seu caso.

Share